J. Borges, A Psicanalista, Xilogravura em papel, 31,75 x 49,53cm,
2005, 2006, 2020, Brasil.
“Por outro lado, não podemos desprezar a palavra. É um instrumento poderoso, o meio de comunicarmos nossos sentimentos, o caminho para termos influência sobre as demais pessoas. Palavras podem beneficiar enormemente ou infligir danos terríveis. Sem dúvida, no começo foi o ato, a palavra veio depois; em vários aspectos significou um progresso cultural que, atenuando-se, o ato se transformasse em palavra. Mas a palavra era originalmente magia, um ato mágico, e ainda conserva muito de sua velha força.”
Sigmund Freud, A questão da análise leiga:
conversações com uma pessoa imparcial, 1926.
No dia a dia, falamos com amigos, colegas e familiares. Buscamos apoio, conselhos, companhia. Conversamos sobre tudo: o tempo, o trabalho, a família, as preocupações sobre o futuro e as lembranças do passado. Expressões como “falar alivia” são comuns, reforçando a ideia de que colocar sentimentos e sofrimentos em palavras pode trazer certo alívio. Mas será que falar, por si só, é suficiente?
Quem já passou por uma experiência psicanalítica sabe a importância das palavras. Na clínica, elas são o próprio instrumento do tratamento. “Diga tudo o que lhe vier à cabeça”, orienta o analista, e isso basta. Mas o que diferencia esse dizer do que falamos no dia a dia? O que, afinal, se diz em uma análise?
Desde a criação da psicanálise, seu fundador, Sigmund Freud, colocou a função da palavra no centro do tratamento ao perceber, pela experiência clínica, que a fala carrega mais do que o paciente intenciona dizer. Diante de um analista que escuta, sem julgamentos ou moralização, torna-se possível enunciar pensamentos muitas vezes inconfessáveis. No entanto, a análise não se reduz a um desabafo de sentimentos e nem se limita às novidades da semana. Seu valor reside naquilo que emerge no próprio ato de falar - e naquilo que escapa: um lapso, um ato falho, uma repetição inesperada, revelando aspectos inconscientes da vida psíquica.
Na visão freudiana, o inconsciente é um saber ao qual o sujeito não tem acesso direto, que se manifesta nos tropeços da linguagem. Por isso, em uma análise, menos a construção de uma narrativa sistemática ou coerente, importa o dizer tudo o que lhe vem à mente, sem censura, mesmo que pareça absurdo ou desconexo. Essa regra primordial, conhecida como associação livre, cria as condições para que elementos inconscientes aflorem na fala. O que vem à tona, então, não são apenas lembranças ou relatos, mas desejos, medos e conflitos que estruturam a vida psíquica de modo inconsciente. A experiência analítica, nesse sentido, consiste em dizer o que não se sabia que se sabia.
O trabalho psicanalítico, portanto, não se sustenta na simples recordação de eventos passados. Seu valor não está na rememoração dos fatos, mas naquilo que o sujeito é capaz de construir a partir deles. Sua consequência é a restituição da própria história do sujeito. A análise permite que a memória se torne matéria viva, passível de novas elaborações, em vez de um registro imutável. Para isso, é preciso que o analisando escute a própria fala e perceba nela aquilo que se diz conscientemente, e aquilo que claudica, permitindo que o passado deixe de ser um dado fixo e se torne matéria para novas elaborações. Aqui reside uma diferença fundamental entre a fala cotidiana e a fala em análise: enquanto no dia a dia falamos muitas vezes em busca deste sentimento de alívio imediato e bem-estar, na psicanálise esses efeitos podem surgir, mas não constituem o seu objetivo central. Como bem nos advertiu Freud, o tratamento psicanalítico é um percurso sem garantias.
Na experiência analítica, a construção de novos sentidos só se torna possível porque a fala se endereça a um analista, cuja posição é singular. Não se trata de um amigo, conselheiro ou confidente. Seu lugar é distinto e, justamente por isso, permite que a análise aconteça. Discutir a posição do analista exigiria, por si só, um novo artigo, pois trata-se de um tema complexo. Diferente de um interlocutor comum, o analista opera como uma presença que disponibiliza uma escuta e, por meio de intervenções — que podem incluir o silêncio —, provoca deslocamentos no discurso do analisante, permitindo que algo da repetição inconsciente se revele. Seu papel não é fornecer respostas prontas, nem caminhos predefinidos, mas possibilitar que o sujeito se depare com suas próprias construções, contradições e, muitas vezes, com um vazio que precisa ser elaborado. A escuta analítica inaugura um campo no qual a palavra pode produzir algo novo. Ao dirigir-se ao analista, o sujeito confronta um saber que desconhecia em si mesmo — algo que emerge no próprio ato de dizer. Esse processo ressoa na forma como ele se relaciona com sua história, seus desejos e impasses, abrindo possibilidades para novos modos de estar na própria vida.
Na sessão de psicanálise, fala-se como em nenhum outro lugar. Sem a exigência de coerência imediata, sem a necessidade de narrativas organizadas ou agradáveis, a palavra circula e ecoa em registros mais profundos. E é nesse movimento que uma transformação pode ocorrer: quando se reconhece a repetição, a insistência de certas palavras, a presença daquilo que vacila, mas que, ao mesmo tempo, constitui aquilo de mais singular em um sujeito. A análise exige implicação e trabalho: um percurso de elaboração e apropriação da própria história, que desestabiliza fixações e abre espaço para novos arranjos. Por isso, a experiência psicanalítica é singular. Diferente de uma conversa com um amigo ou do aconselhamento de um especialista, ela conduz a fala até suas últimas consequências. Esse percurso, muitas vezes surpreendente, o sujeito pode se escutar como nunca antes, ouvindo-se de um modo antes impensável.
Referências
FREUD, S. Sobre o início do tratamento (1913). In: Volume 10. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, p. 123-145.
FREUD, S. A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa imparcial. In: Volume 17. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Companhia das Letras.
LACAN, J. 1986. O Seminário, Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, J. 1998. A função e o campo da palavra e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.
Isabela Fernandes Pinheiro é psicanalista e atua em consultório particular. É pesquisadora, curadora de artes, e docente. Possui mestrado em História da Arte e Cultura Visual pela Lindenwood University, Missouri, Estados Unidos, e graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
É professora adjunta no departamento de História da Arte e Cultura Visual da Lindenwood University. É co-fundadora do Psicanálise, Arte e Feminismo (P_A_F). Trabalhou como curadora no Historical Hawken House Museum, em St. Louis, colaborando na reformulação da exposição permanente do museu, intitulada "Reconstruction and Industrialization: The Gilded Age in Saint Louis”, e foi curadora da exposição “Historic Hawken House: A Review Of The Past, A Look Into The Future” dedicada aos 50 anos da instituição.
Suas investigações articulam as relações entre psicanálise e arte a partir da sua prática clínica, e as intersecções com a estética, a teoria crítica, o gênero e feminismo.