O trabalho é uma realidade tão antiga quanto a própria humanidade. Como atividade vital, independe de qualquer valoração e está presente em todos os eventos humanos como fator de mediação sócio-metabólico, conciliando a natureza orgânica e espiritual de cada indivíduo. Quanto à sua significação, não sendo determinado por uma natureza imutável, constitui-se como produto de uma produção discursiva social e historicamente construída.
Em sua formulação original, influenciada pelo pensamento mítico-religioso, o trabalho era compreendido como uma forma de tortura, atividade bestial relegada aos inumanos, ou mesmo uma maneira de expiação da culpa pelo pecado original. É o que revela sua origem etimológica como tripallium, instrumento de três estacas utilizado para prender animais durante a ferradura, de onde deriva o português trabalho, o espanhol trabajo e o francês travail.
Com o desenvolvimento das relações econômicas e a necessidade de superar o ócio criativo em benefício da produtividade aplicada às trocas comerciais – a negação do ócio, ou neg otium, é a origem etimológica da palavra “negócio” – atribuiu-se ao trabalho a qualidade de valor e medida de riqueza das nações. A vertiginosa expansão industrial ocasionou a formação de uma sociedade cujo modo de produção se assentou na exploração da mão-de-obra alheia e no assalariamento. Rapidamente, o trabalho se tornou questão de interesse.
Se no campo econômico era a divisão do trabalho que impulsionava o desenvolvimento das nações, nas relações políticas e sociais o trabalho deixou de ser percebido como mera técnica produtiva e se tornou suporte da própria inserção social de cada indivíduo. No plano jurídico, por sua vez, a necessidade de conter os excessos na exploração do trabalho humano se tornou prioridade no cenário internacional. Destaca-se, para esse fim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (DUDH), que atribuiu ao trabalho a condição de direito humano e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), cujo propósito reside na conciliação entre o desenvolvimento humano e a geração de riqueza por meio da universalização de normas do trabalho.
Apesar dos avanços significativos no tratamento conferido ao trabalho e suas implicações, o século XXI introduziu uma nova ordem social amparada na submissão às leis de mercado e na crença inabalável de que o desenvolvimento de novas tecnologias seria suficiente para solucionar problemas estruturais da humanidade. Nas relações laborais, seus efeitos são percebidos na substituição massiva do trabalho humano pelo de máquinas e na precarização estrutural do trabalho, impulsionada pela flexibilização da legislação trabalhista e corrosão dos direitos sociais e demais conquistas históricas dos trabalhadores.
No Brasil, país signatário da DUDH e membro da OIT, onde o valor social do trabalho é Princípio Fundamental da República e fundamento do Estado brasileiro e o direito fundamental ao trabalho digno é constitucionalmente assegurado, essa realidade é caracterizada por altas taxas de informalidade; um limbo jurídico na proteção social dos trabalhadores sem vínculo empregatício; uma tendência à flexibilização da legislação trabalhista em nome de uma pretensa “evolução” das formas de produção; e, mais recentemente, pelo desprestígio do trabalho formal entre os mais jovens.
Nota-se, então, que a mera existência de um conjunto de normas provenientes de uma autoridade legitimamente investida de competência política para legislar, e, com isso, impor padrões de conduta desejados, não é, por si só, capaz de solucionar problemas estruturais da sociedade. Há que se atentar também – e especialmente – aos valores vivenciados por cada indivíduo, os quais, uma vez socialmente compartilhados, atuam como moduladores da coletividade e alimentam um imaginário social em que o trabalho é objeto de exploração e a proteção social conferida ao trabalhador é sinônimo de fracasso profissional.
Portanto, antes mesmo de solucionar os trâmites jurídicos e burocráticos necessários para efetivar os direitos humanitários do trabalho já previstos e amplamente divulgados em tratados internacionais, bem como aqueles estabelecidos pela legislação nacional, é preciso cultivar, no âmbito público e privado, político e social, um imaginário coletivo que reconheça o trabalho como atividade vital e expressão da própria humanidade. Vale dizer, é preciso fomentar uma cultura política, social e empresarial de adesão radical aos valores humanitários atrelados ao trabalho.
Essa compreensão revincula a noção de progresso científico-tecnológico ao desenvolvimento humano, portanto, aos interesses morais; privilegia a dimensão ético-filosófica do trabalho por meio da superação da lógica segundo a qual as sociedades devem se comportar de forma puramente econômica; e deve ser a base de toda e qualquer política pública ou privada que pretenda, de fato, colocar o ser humano no centro da transformação social.
Na atual conjuntura jurídica, especialmente após a massiva adesão global à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e à disseminação da maturidade democrática e do Estado de Direito em grande parte do planeta, a dificuldade para efetivar a proteção social, especialmente nas relações de trabalho, não decorre de questões econômicas, mas, sobretudo, de questões de ordem política e cultural relacionadas à falta de adesão da população aos valores humanitários consagrados local e internacionalmente e à falta de lealdade dos poderes públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário) e privados (organizações internacionais e empresas) a estes mesmos valores.
Em um cenário global em que se vislumbra o trabalho como fonte de dignidade e chave para a inserção social, deve-se usufruir do potencial transformador do trabalho humano, ao mesmo tempo em que recusar todo trabalho precário. Nesse contexto, a proteção social mínima a todo trabalho humano deve ser tomada como questão de interesse da humanidade como espécie, e não de classe social.
Para atingir um patamar civilizatório compatível com os tempos atuais, é preciso superar a barreira do discurso político e o conforto da vigência de “normas de papel” para, enfim, implementar uma nova visão de mundo que supere a ideologia do trabalho como mecanismo de exploração e o reconheça como atividade indispensável para a evolução sustentável da humanidade. Afinal, não existe progresso sem desenvolvimento social.
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Felipe Fernandes Pinheiro é advogado formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, doutorando em Direito do Trabalho pela PUC-SP. Membro dos grupos Novas Dimensões das Relações de Trabalho e a Efetividade dos Direitos Trabalhistas (vinculado ao Programa de Pós Graduação da PUC-SP) e ALAF (Associação Latina de Futuros).
Este artigo tem caráter informativo e não substitui a orientação de profissionais qualificados, como psicólogos ou psiquiatras.
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